Um dos principais dilemas da
educação contemporânea é aquele que gira em torno da permanência dos alunos do
ciclo médio nos bancos escolares. Atraídos pelo número de estímulos e pela
velocidade da sociedade, a escola lhes parece enfadonha. No entanto, muito do
que lhes parece fora de propósito nessa fase - experiências, relações,
conhecimentos - só irá adquirir sentido ao longo do tempo. Muitas vezes acaba
por não fazer, por diversos motivos, entre eles o abandono da escola.
Todo esse clima de desinteresse
dos adolescentes pela vida escolar tem gerado muitas reflexões mundo afora
sobre os possíveis caminhos de fazer com que o ensino médio seja vivido e
percebido como significativo. Nessa perspectiva, o desafio dos sistemas de
ensino nos últimos anos envolve a capacidade de organizar um programa curricular
que consiga, ao mesmo tempo, formar os jovens para continuar os estudos no
ensino superior e prepará-los para o mercado de trabalho. Ou seja, fazer com
que se escolarizem o mais possível, o que muitas vezes obscurece outros
sentidos da educação.
No Brasil, o cenário segue roteiro
parecido. As novas proposições do governo federal para o ensino médio têm o
objetivo de elevar o índice de conclusão do ensino médio regular para o patamar
de países mais desenvolvidos. "Para esses países, a permanência do aluno
em sala de aula nessa etapa deixou de ser um desafio há alguns anos. Hoje
existe uma forte pressão socioeconômica, e muitos daqueles que saem não têm a
menor chance profissional na vida", avalia Cândido Gomes, consultor da
Unesco e professor da Universidade Católica de Brasília (UCB-DF).
Evidência disso é o índice de
jovens de 18 a 24 anos que completaram o segundo ciclo do 2º grau, que equivale
ao nosso ensino médio. Conforme o Gabinete de Estatísticas da União Europeia
(Eurostat), a média de conclusão nessa faixa etária entre os 27 membros é de
79%. Nos Estados Unidos, chega a 89%. No Brasil, conforme a Síntese dos
Indicadores Sociais divulgada pelo IBGE em 2010, somente 37% dos jovens de 18 a
24 anos já completaram a etapa. Segundo pesquisa recente divulgada pelo
Instituto Unibanco junto à rede estadual paulista, de cada 100 alunos que
terminam o ensino fundamental com a idade correta, 83 vão para o ensino médio.
Destes, apenas 47 terminam o médio em três anos. Considerando a evasão do
início do fundamental ao final do médio, de cada 100 estudantes que entram saem
23 no período correto.
Para aumentar esses índices de
conclusão, o MEC aposta na ampliação da educação profissional, ainda pouco
expressiva no Brasil. No âmbito do ensino secundário, ela responde por apenas
14% das matrículas, contra 77% da Áustria, 58% da Alemanha, 44% da França, 42%
da China e 37% do Chile.
Realidade brasileira
Para melhorar o cenário, o governo
federal aposta, desde 2004, em propostas que apontem para um programa
curricular mais flexível. Uma das principais medidas foi a possibilidade de
integrar ensino regular e a educação profissional, sacramentada pelo decreto
5.154/04. Dessa maneira, instituições privadas e públicas oferecem as aulas
regulares em um turno e cursos que preparem para o mercado de trabalho em
outro, sob uma mesma matrícula.
Esse é o caso de Matheus Escobar,
aluno do 2º ano da Escola Técnica Estadual (Etec) Jorge Street, em São Paulo.
Durante a tarde, ele cursa as disciplinas do ensino formal tradicional; de manhã,
tem aulas de desenho técnico mecânico, automação industrial e eletrônica
digital, entre outras.
Aos 16 anos, Matheus resolveu
fazer o ensino médio integrado porque, na sua opinião, esse caminho lhe dará
mais chances de seguir os estudos no ensino superior. "Quero ir o mais
rápido possível para a universidade. Se tiver de ser uma particular, com a
mecatrônica tenho chances de arrumar um bom trabalho para conseguir
pagá-la", diz, referindo-se à formação técnica que está cursando, umas das
83 oferecidas no ensino técnico paulista.
Os números comprovam a tese do
estudante. Uma pesquisa conduzida pelo economista Marcelo Neri, do Centro de
Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV), divulgada em 2010, apontou
que a chance de arrumar emprego para jovens que cursam alguma modalidade de
educação profissional é 48% maior. A possibilidade de carteira assinada também
cresce 38%. Para chegar a esses índices a pesquisa relacionou dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2007 e da Pesquisa Mensal de
Emprego (PME) dos oito anos anteriores.
Além da educação integrada, o
decreto 5.154/04 traz outras duas formas de articulação entre o ensino médio e
a educação profissional: a concomitante, para quem já está cursando o ensino
médio regular, com duas matrículas por aluno e oferta de disciplinas na mesma
escola ou em local distinto; a subsequente, oferecida para aqueles que já
terminaram o 2º grau.
Novas ideias
Para aumentar o índice de
matrículas no ensino técnico, o governo federal aposta também no Programa
Nacional de Acesso à Escola Técnica (Pronatec). Anunciado em fevereiro
deste ano pela presidente Dilma Rousseff, ele vai financiar cursos
profissionalizantes no nível médio em instituições particulares para pessoas de
baixa renda. Alunos que já se formaram no segundo grau também poderão
participar, através do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior
(Fies).
Para o titular da Secretaria de
Educação Profissional e Tecnológica (Setec), Eliezer Pacheco, a oportunidade
irá contribuir não apenas para elevar a taxa de jovens na área técnica mas
também motivá-los a concluir o ensino médio. "O programa é mais uma
alternativa importante para responder às expectativas dessa população",
acrescenta o secretário. Quando esta edição foi fechada, em meados de abril, o
plano aguardava alguns estudos finais para ser lançado pela presidência da
República. A aposta na educação profissional se consolidaria através da ofertas
de cursos também na educação não formal e no ensino superior (tecnólogos), além
do médio.
Outro programa para a área, em
vigor desde 2009, é o Escola Técnica Aberta do Brasil (E-Tec Brasil), que
ministra educação a distância e envolve os segmentos concomitante e
subsequente. Apenas instituições públicas federais, estaduais e municipais que
já oferecem o modelo presencial podem abrir núcleos.
O E-Tec Brasil é direcionado para
pessoas que moram em cidades do interior e periferias de áreas metropolitanas.
Eliezer Pacheco explica que os cursos estão concentrados na área de serviços,
mas que há convênios com institutos federais para as aulas laboratoriais.
"Também estamos adquirindo caminhões-laboratórios, que irão aos lugares
mais distantes", completa. Hoje, o programa tem 291 núcleos espalhados em
20 estados, com 28 mil alunos matriculados. E há ainda o Brasil
Profissionalizado. Até o fim de 2011 ele irá repassar cerca de R$ 900 milhões
para os estados expandirem e modernizarem as redes públicas de ensino médio
integradas à educação profissional.
Novo modelo
Outra proposta implantada em caráter
experimental é o Ensino Médio Inovador (EMI). Lançado no ano passado, tem entre
as suas principais ações o aumento da carga horária letiva anual de 800 para
mil horas e a destinação de 20% dessa carga à oferta, pela escola ou por
parceiros, de disciplinas eletivas.
Nesse modelo, o currículo passa a
valorizar a interdisciplinaridade e deve ser organizado em torno de quatro
eixos: trabalho, tecnologia, ciência e cultura. Também é previsto o incentivo à
contratação de professores com dedicação exclusiva e o estímulo às atividades
de produção artística e de aulas teórico-práticas em laboratórios.
O EMI funciona atualmente em
escolas de 18 estados que resolveram aderir a ele e recebem apoio técnico
e financeiro da União. Segundo dados da Secretaria de Educação Básica
(SEB/MEC), os recursos totais somam R$ 33 milhões e atingem 296 mil estudantes
em 357 escolas.
Atualmente a SEB reformula o
programa e uma nova versão está prevista para maio. Uma das medidas sendo
planejadas é articulá-lo com outro programa do ministério, o Mais Educação, que
oferece suporte financeiro diretamente às escolas para passarem a ofertar
atividades optativas. Elas são agrupadas em macro campos como esporte e lazer,
cultura e artes, cultura digital, educomunicação e educação econômica.
Na opinião de Maria Sylvia Simões,
professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, as ideias
do Ensino Médio Inovador representam um avanço na educação brasileira. Por
outro lado, lembra a professora, a consolidação do projeto no país inteiro
esbarra em um ponto bastante complicado: o MEC e os governos estaduais precisam
estar em sintonia. Mas alguns estados já sinalizaram que não deverão aderir.
"Se não há vontade política de quem tem o poder de decisão, fica difícil
implantar", comenta Maria Sylvia Simões. Outro problema é o custo do
modelo, bem superior ao do ensino médio tradicional.
O $ da questão
Esse descompasso entre os entes
federativos também está refletido na educação profissional. De acordo com o
Censo Escolar 2010, nas escolas da rede federal, o ensino técnico integrado
representa a maior parte das matrículas da área, com 46% (76 mil alunos entre
165 mil). Agora, considerando toda a educação profissional, ele cai para
último, com 18,9% (215 mil em um universo de 1,14 milhão).
Entretanto, além de questões
políticas, as propostas do governo federal para o ensino médio também enfrentam
dificuldades para emplacar nacionalmente por causa de seu custo, difícil de ser
assumido pelos estados. Álvaro Chrispino, professor do Centro Federal de
Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet/RJ), explica que, no caso
do ensino integrado, o custo de laboratórios e equipamentos é alto e essa forma
de articulação também exige capacitar os docentes das duas áreas. "A
maioria dos estados só consegue ofertar em quantidade se houver contrapartida
da federação."
Para que se tenha ideia, ao mesmo
tempo que o valor mínimo previsto pelo Fundeb 2011 para o ensino médio é de R$
2.066,46, esse montante varia muito entre diferentes unidades da federação. No
Rio Grande do Sul, está próximo do mínimo (R$ 2.039,22); no Amapá, é de R$
2.920,89; em São Paulo, R$ 3.168,45; em Roraima, R$ 3.498,52.
A contratação de docentes é outra
questão. Maria Sylvia Simões afirma que o sucesso do Ensino Médio Inovador e do
ensino integrado significará crescimento da demanda. Assim, as secretarias de
Educação precisarão abrir novos concursos e aumentar a carga horária de quem já
é da rede. "Só que aí tem de ver quem consegue financiar isso e, ao mesmo
tempo, oferecer um salário decente", pontua.
Segundo levantamento feito pelo
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), através do Cadastro Geral de Empregados
e Desempregados (Caged), o salário médio nacional de admissão de um docente do
2º grau é de R$ 1.078. Em comparação com outros países, o Brasil está bem atrás
nesse quesito. Na França, um professor do ensino médio em início de carreira
ganha cerca de R$ 4 mil. Nos Estados Unidos o valor médio chega a R$ 5,5 mil.
Jaqueline Moll, diretora de
Concepções e Orientações Curriculares para a Educação Básica da SEB, afirma que
os repasses do governo federal às redes estaduais devem aumentar, porém as
propostas têm o objetivo de proporcionar condições iniciais para desenvolver
experiências que possam ser ampliadas dentro do sistema de ensino. "São
projetos de médio e longo prazo. Nesse sentido, os estados têm como promover
mudanças graduais de acordo com suas possibilidades", avalia a diretora.
Quem se beneficia
Outra discrepância que as
propostas do MEC não solucionam é a qualidade das instituições e redes em um
sistema que privilegia o mérito do aluno. Como mostra o Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) observado em 2009, a média do segundo
grau nas redes estaduais brasileiras é 3,4, mas a diferença entre os entes pode
chegar a mais de um ponto.
O Paraná tem a melhor pontuação,
com 3,9, seguido por Rondônia e Santa Catarina, empatados com 3,7. Entre os
piores, Rondônia apresenta a nota mais baixa, 2,7. O estado é acompanhado de
perto por Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Alagoas, que obtiveram 2,8. A
escala do Ideb vai de 0 a 10.
As notas do Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem) também são evidência do tamanho da disparidade. Das 20
escolas públicas mais bem colocadas em 2009, 13 são do Sudeste, quatro estão no
Nordeste, duas no Sul, uma no Centro-Oeste e nenhuma na região Norte. Detalhe
importante: essas 20 instituições com as maiores notas fazem testes seletivos
de admissão, os vestibulinhos. A melhor da rede pública no ranking do Enem sem
esse tipo de processo ocupou a 729ª colocação.
Álvaro Chrispino, docente do
Cefet/RJ, diz que, se não houver igualdade de condições entre as escolas, as
vagas daquelas que tiverem sucesso com a implantação dos projetos do MEC serão
cada vez mais concorridas. Com o tempo, elas podem acabar utilizando mecanismos
de seleção.
Essa tendência decorreria de uma
precipitação do MEC, que elaborou boas ideias para todo o país sem levar em
conta as desigualdades históricas. "Se a qualidade do sistema de uma rede
se mantém desnivelada, as propostas para todo o ensino médio continuam a surtir
efeito apenas em uma pequena parcela de jovens", conclui ele. Ou seja, a
educação, ao contrário dos discursos públicos, continuaria a não se efetivar
como um fator de redução das desigualdades sociais, ou o faria em ritmo muito
menor que o necessário ao equilíbrio social do país.